terça-feira, 15 de janeiro de 2008

"Ein jeder Engel ist schrecklich"



o anjo que tive abandonou o meu altar

não se guardam anjos na gaiola

eu sabia

acendia-lhe velas de cera de abelha

e oferendava-lhe incenso puro

água consagrada

seda e algodão – mas um anjo não precisa de oferendas

eu sabia

vi-o chorar e desperdiçar as asas

acendi mais velas e queimei mais incenso

disse orações

ele continuou a chorar

o altar está vazio

ele deixou-o e ascendeu

ao seu mínimo

mas livre

céu


Frederico Mira George, "Raiz Pé de Diabo", 2006

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PRIMEIRA ELEGIA

Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos? Todo anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia valer? Nem anjos, nem homens e o intuitivo animal logo adverte que para nós não há amparo neste mundo definido.
Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever cada dia; resta-nos a rua de ontem e o apego cotidiano de algum hábito que se afeiçoou a nós e permaneceu. E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços do mundo desgastar-nos a face — a quem se furtaria ela, a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o coração solitário? Será mais leve para os que amam? Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino. Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços para os espaços que respiramos — talvez os pássaros sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.

Sim, as primaveras precisam de ti. Muitas estrelas queriam ser percebidas. Do passado profundo afluía uma vaga, ou quando passavas sob uma janemla aberta, uma viola d'amore se abandonava. Tudo isso era missão. Acaso a cumpriste? Não estavas sempre distraído, aà espera, como se tudo anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la, se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?) Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes; ainda não é bastante imoral sua celebrada ternura. Tu quase as invejas — estas abandonadas que te parecem tão mais ardentes que as apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda mesma foi um pretexto para ser — nasciemnto supremo. Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio esgotado, como se as forças lhe faltassem para realizar duas vezes a mesma obra. Com que fervor lembraste Gaspara Stampa, cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objetivo amado e superá-lo, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas os santos ouviam, quando o imenso chamado os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados, os prodigiosos, e nada percebiam, tão absortos ouviam. Não que possas suportar a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem, a incessante mensagem que gera o silêncio. Ergue-se agora, para que ouças, o rumor dos jovens mortos. Onde quer que fosses, nas igrejas de Roma e Nápoes, não ouvias a voz de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam, sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa... O que pede essa voz? a ansiada libertação da aparência de injustiça que as vezes perturba a agilidade pura de suas almas. É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra, abandonar os hábitos apenas aprendidos, às rosas e a outras coisas o sentido do vir-a-ser humano; o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas, não mais ser; abandonar até mesmo o próprio nome como se abandona um brinquedo partido. Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho, ver no espaço tudo o quanto se encandeava, esvoaçar, desligado. E o estar-morto é penoso e quantas tentativas até encontrar em seu seio um vestígio de eternidade. — Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem se caminham entre vivos ou mortos. Através das duas esferas, todas as idades a corrente eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles que se desabituam do terrestre, docemente, como de suave seio maternal. Mas nós, ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira música para lamentas Linos, violentou a rigidez da matéria inerte? No espaço que abandonava, jovem, quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu em vibrações — que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.


RAINER MARIA RILKE

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